
02.04.2025
Requiem em ré menor, K. 626 – Wolfgang Amadeus Mozart
Poucas obras na história da música carregam o peso simbólico e o mistério que envolvem o Requiem de Wolfgang Amadeus Mozart. Última composição do génio de Salzburgo, esta Missa de Requiem em ré menor, K. 626, ficou inacabada à sua morte, em dezembro de 1791, sendo posteriormente completada pelo seu discípulo e copista Franz Xaver Süssmayr. A obra transcendeu a sua função litúrgica, tornando-se um monumento do repertório sacro e um testamento artístico da grandiosidade e complexidade emocional de Mozart.
Deixada incompleta ao seu falecimento em 1791, a última obra de Mozart imortaliza a tragédia de um génio interrompido.
A lenda e a realidade da composição
Envolto em mistério desde a sua génese, o Requiem foi encomendado anonimamente pelo conde Franz von Walsegg, um nobre músico amador, que pretendia atribuir a autoria da peça a si próprio, em memória da sua esposa falecida. Contudo, quis o destino que a própria morte de Mozart se interligasse tragicamente à composição desta obra, dando origem a especulações e mitificações ao longo dos séculos, espelhadas em tantas obras literárias, teatrais e cinematográficas.
Mozart trabalhou na partitura até os seus últimos dias, deixando um conjunto diversificado de manuscritos, que vão desde fragmentos completos, a esboços musicais e apenas indicações, embora muito claras, para diversas secções. Após a sua morte, Constanze Mozart, sua viúva, temendo perder a remuneração da encomenda, procurou diversos músicos com a intenção de encontrar quem concluisse a obra, tarefa que acabou por recair sobre Süssmayr. Embora se discuta até hoje a autenticidade e fidelidade das adições, a versão de Süssmayr tornou-se a mais difundida e executada, sendo a que mais fielmente respeita o espírito mozartiano.
A lenda de Mozart e o mistério do Requiem: uma obra incompleta, enigmática e marcada por especulações.
Estrutura e simbolismo musical
O Requiem de Mozart segue a tradição da missa de requiem católica, mas reveste-se de uma profundidade expressiva que transcende o convencionalismo litúrgico, tornando-se uma meditação musical sobre a finitude humana. A tonalidade de ré menor, é, em si mesma, uma referência de devoção e espiritualidade, presente na escrita de Bach em obras como a Paixão Segundo São Mateus, o coro de abertura da Paixão Segundo São João, Herr, unser Herrscher, dessen Ruhm in allen Landen herrlich ist! (Senhor, Senhor nosso, quão admirável é o teu nome em toda a terra) e o Crucifixus da Missa em si menor. Händel também optou por esta tonalidade em peças sacras como o extraordinário Dixit Dominus ou o paradigmático Behold the Lamb of God (Eis o cordeiro de Deus) da sua grande oratória O Messias. Por ironia ou irreverência, sem dúvida por convicção, é a tonalidade escolhida por Mozart para a sua ópera Don Giovanni, K. 466, contribuindo fortemente para o carácter sombrio, solene, e quiçá sacrílego, da composição musical.
Don Giovanni: a ópera de Mozart em ré menor, e o conflito entre o profano e o sagrado.
I. Introitus – Requiem aeternam
A obra inicia num tom de recolhimento e solenidade, onde a invocação do descanso eterno é permeada por um lirismo que remete à tradição polifónica renascentista. A sonoridade austera dos trombones, e a escrita vocal de textura densa atribuída ao coro, intensifica o dramatismo subjacente ao texto, e sublinha o seu caráter de profunda reverência musical.
II. Kyrie eleison
O Kyrie, estruturado como uma fuga de grande solidez contrapontística, evoca a grandiosidade do estilo barroco, evidenciando a influência de compositores como Bach e Händel. O clamor pela misericórdia divina adquire aqui um caráter universal e atemporal, num tecido sonoro que se adensa até ao clímax final.
III. Sequentia
A Sequência é a secção mais extensa e dramática do Requiem, composta por seis secções, cada uma com uma identidade expressiva distinta, e concentra os momentos mais impactantes de toda a obra.
Dies irae:
A evocação do Dia da Ira surge com um clamor quase operático, com orquestração vigorosa e escrita vocal incisiva.
Tuba mirum:
Inicia-se com um solo de trombone, anunciando a chamada à ressurreição dos mortos, enquanto a alternância entre as vozes solistas ilustra a diversidade da experiência humana perante o tribunal divino. O trombone solista introduz o solo de baixo, seguido pela entrada gradual das outras vozes, numa construção magistral de grande efeito teatral.
Rex tremendae:
Aqui, Mozart alcança a síntese sublime da dualidade entre o temor e a esperança, num diálogo musical entre grandeza e humildade, oscilando entre o terror do juízo divino e a esperança de redenção.
Recordare:
Uma das secções mais ternas e líricas, exprime a súplica humana através de um quarteto vocal que alterna entre doçura e inquietação.
Confutatis:
Alternando entre acordes impetuosos e passagens de pungente lirismo, esta secção dramatiza a condenação e a salvação com uma força expressiva incomparável, por vezes quase demolidora, com passagens de acentuado contraste dinâmico e tímbrico.
Lacrimosa:
Um dos excertos mais célebres da obra, interrompido pela morte de Mozart. A sua melodia ascendente e a pungência do texto tornam este momento um dos mais comoventes e icónicos de toda a música sacra.
IV. Offertorium
O Domine Jesu Christe e o Hostias retoma o rigor contrapontístico, evocando um sentido de súplica coletiva. O diálogo entre coro e orquestra exprime um clamor de intercessão pelos fiéis defuntos, consolidando a unidade litúrgica e teológica da obra.
V. Sanctus e Benedictus
Compostos por Süssmayr, o Sanctus, com as suas majestosas progressões musicais, introduz um caráter triunfal e glorioso, enquanto o Benedictus, de grande lirismo e delicadeza, apresenta um quarteto vocal de elevada delicadeza musical, contrastando com a força coral da fuga do Hosanna que finaliza a secção.
VI. Agnus Dei e Communio
O Agnus Dei, também atribuído a Süssmayr, na sua solenidade inexorável, conduz à secção final, o Lux Aeterna, que, numa evidente invocação e homenagem do discípulo ao mestre falecido e à sua genial composição, recapitula o material inicial do Introitus e do Kyrie, conferindo à obra um caráter cíclico e de perenidade espiritual.
O termo Requiem vem do latim "requiem aeternam", que significa "descanso eterno", um pedido para que as almas encontrem paz após a morte.
Seja na sua forma inacabada ou na versão concluída por Süssmayr, que a Orquestra do Algarve interpreta neste concerto, o Requiem de Mozart mantém-se como uma das mais poderosas expressões da música sacra, ultrapassando largamente o seu contexto litúrgico para se afirmar como uma meditação universal sobre a vida e a morte. A sua riqueza melódica e harmónica, a expressividade dramática e a carga emocional que acarreta tornaram-no um símbolo musical do mistério da existência, uma despedida sublime de um dos maiores génios da história da música.
Rui Baeta,
Mediador Artístico e Cultural
02.04.2025
Requiem em ré menor, K. 626 – Wolfgang Amadeus Mozart
Poucas obras na história da música carregam o peso simbólico e o mistério que envolvem o Requiem de Wolfgang Amadeus Mozart. Última composição do génio de Salzburgo, esta Missa de Requiem em ré menor, K. 626, ficou inacabada à sua morte, em dezembro de 1791, sendo posteriormente completada pelo seu discípulo e copista Franz Xaver Süssmayr. A obra transcendeu a sua função litúrgica, tornando-se um monumento do repertório sacro e um testamento artístico da grandiosidade e complexidade emocional de Mozart.
Deixada incompleta ao seu falecimento em 1791, a última obra de Mozart imortaliza a tragédia de um génio interrompido.
A lenda e a realidade da composição
Envolto em mistério desde a sua génese, o Requiem foi encomendado anonimamente pelo conde Franz von Walsegg, um nobre músico amador, que pretendia atribuir a autoria da peça a si próprio, em memória da sua esposa falecida. Contudo, quis o destino que a própria morte de Mozart se interligasse tragicamente à composição desta obra, dando origem a especulações e mitificações ao longo dos séculos, espelhadas em tantas obras literárias, teatrais e cinematográficas.
Mozart trabalhou na partitura até os seus últimos dias, deixando um conjunto diversificado de manuscritos, que vão desde fragmentos completos, a esboços musicais e apenas indicações, embora muito claras, para diversas secções. Após a sua morte, Constanze Mozart, sua viúva, temendo perder a remuneração da encomenda, procurou diversos músicos com a intenção de encontrar quem concluisse a obra, tarefa que acabou por recair sobre Süssmayr. Embora se discuta até hoje a autenticidade e fidelidade das adições, a versão de Süssmayr tornou-se a mais difundida e executada, sendo a que mais fielmente respeita o espírito mozartiano.
A lenda de Mozart e o mistério do Requiem: uma obra incompleta, enigmática e marcada por especulações.
Estrutura e simbolismo musical
O Requiem de Mozart segue a tradição da missa de requiem católica, mas reveste-se de uma profundidade expressiva que transcende o convencionalismo litúrgico, tornando-se uma meditação musical sobre a finitude humana. A tonalidade de ré menor, é, em si mesma, uma referência de devoção e espiritualidade, presente na escrita de Bach em obras como a Paixão Segundo São Mateus, o coro de abertura da Paixão Segundo São João, Herr, unser Herrscher, dessen Ruhm in allen Landen herrlich ist! (Senhor, Senhor nosso, quão admirável é o teu nome em toda a terra) e o Crucifixus da Missa em si menor. Händel também optou por esta tonalidade em peças sacras como o extraordinário Dixit Dominus ou o paradigmático Behold the Lamb of God (Eis o cordeiro de Deus) da sua grande oratória O Messias. Por ironia ou irreverência, sem dúvida por convicção, é a tonalidade escolhida por Mozart para a sua ópera Don Giovanni, K. 466, contribuindo fortemente para o carácter sombrio, solene, e quiçá sacrílego, da composição musical.
Don Giovanni: a ópera de Mozart em ré menor, e o conflito entre o profano e o sagrado.
I. Introitus – Requiem aeternam
A obra inicia num tom de recolhimento e solenidade, onde a invocação do descanso eterno é permeada por um lirismo que remete à tradição polifónica renascentista. A sonoridade austera dos trombones, e a escrita vocal de textura densa atribuída ao coro, intensifica o dramatismo subjacente ao texto, e sublinha o seu caráter de profunda reverência musical.
II. Kyrie eleison
O Kyrie, estruturado como uma fuga de grande solidez contrapontística, evoca a grandiosidade do estilo barroco, evidenciando a influência de compositores como Bach e Händel. O clamor pela misericórdia divina adquire aqui um caráter universal e atemporal, num tecido sonoro que se adensa até ao clímax final.
III. Sequentia
A Sequência é a secção mais extensa e dramática do Requiem, composta por seis secções, cada uma com uma identidade expressiva distinta, e concentra os momentos mais impactantes de toda a obra.
Dies irae:
A evocação do Dia da Ira surge com um clamor quase operático, com orquestração vigorosa e escrita vocal incisiva.
Tuba mirum:
Inicia-se com um solo de trombone, anunciando a chamada à ressurreição dos mortos, enquanto a alternância entre as vozes solistas ilustra a diversidade da experiência humana perante o tribunal divino. O trombone solista introduz o solo de baixo, seguido pela entrada gradual das outras vozes, numa construção magistral de grande efeito teatral.
Rex tremendae:
Aqui, Mozart alcança a síntese sublime da dualidade entre o temor e a esperança, num diálogo musical entre grandeza e humildade, oscilando entre o terror do juízo divino e a esperança de redenção.
Recordare:
Uma das secções mais ternas e líricas, exprime a súplica humana através de um quarteto vocal que alterna entre doçura e inquietação.
Confutatis:
Alternando entre acordes impetuosos e passagens de pungente lirismo, esta secção dramatiza a condenação e a salvação com uma força expressiva incomparável, por vezes quase demolidora, com passagens de acentuado contraste dinâmico e tímbrico.
Lacrimosa:
Um dos excertos mais célebres da obra, interrompido pela morte de Mozart. A sua melodia ascendente e a pungência do texto tornam este momento um dos mais comoventes e icónicos de toda a música sacra.
IV. Offertorium
O Domine Jesu Christe e o Hostias retoma o rigor contrapontístico, evocando um sentido de súplica coletiva. O diálogo entre coro e orquestra exprime um clamor de intercessão pelos fiéis defuntos, consolidando a unidade litúrgica e teológica da obra.
V. Sanctus e Benedictus
Compostos por Süssmayr, o Sanctus, com as suas majestosas progressões musicais, introduz um caráter triunfal e glorioso, enquanto o Benedictus, de grande lirismo e delicadeza, apresenta um quarteto vocal de elevada delicadeza musical, contrastando com a força coral da fuga do Hosanna que finaliza a secção.
VI. Agnus Dei e Communio
O Agnus Dei, também atribuído a Süssmayr, na sua solenidade inexorável, conduz à secção final, o Lux Aeterna, que, numa evidente invocação e homenagem do discípulo ao mestre falecido e à sua genial composição, recapitula o material inicial do Introitus e do Kyrie, conferindo à obra um caráter cíclico e de perenidade espiritual.
O termo Requiem vem do latim "requiem aeternam", que significa "descanso eterno", um pedido para que as almas encontrem paz após a morte.
Seja na sua forma inacabada ou na versão concluída por Süssmayr, que a Orquestra do Algarve interpreta neste concerto, o Requiem de Mozart mantém-se como uma das mais poderosas expressões da música sacra, ultrapassando largamente o seu contexto litúrgico para se afirmar como uma meditação universal sobre a vida e a morte. A sua riqueza melódica e harmónica, a expressividade dramática e a carga emocional que acarreta tornaram-no um símbolo musical do mistério da existência, uma despedida sublime de um dos maiores génios da história da música.
Rui Baeta,
Mediador Artístico e Cultural
